segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Ensaio sobre a cegueira - uma questão de identidade

Em primeiro lugar, nunca li o livro (infelizmente), e por isso mesmo não posso fazer as normais comparações à obra de Saramago (mas confesso que depois de ver o filme tomei consciência de que o livro deve ser realmente brilhante!).

Bom, tendo em conta este pressuposto, posso dizer que gostei bastante do filme. Apesar do início algo duvidoso, à medida que se desenvolve torna-se num poderoso estudo sobre a condição humana, algo entre o Dogville de Lars Von Trier e o Triunfo dos Porcos. Apesar dos boicotes hipócritas de certas entidades devido à forma como os cegos são retratados no filme como “anormais”, o filme trata esse aspecto apenas como uma metáfora. A forma, não o conteúdo. E aí reside a genialidade do argumento.

E em termos de conteúdo há muito: a esquizofrenia e a desorientação inerentes à perda dum pilar fundamental (e dado como adquirido) na nossa vida, e o consequente retorno ao comportamento primitivo, à luta pela sobrevivência e à satisfação dos instintos mais básicos a qualquer custo. A partir desse estado as personagens partem para um comportamento à lá “porcos”: a construção duma sociedade sem escrúpulos num ambiente anárquico. E aí residem algumas das cenas mais fortes do filme. A falta de ética e do mais básico respeito e amor-próprio: já não sou Eu, sou apenas um corpo por alimentar. E afinal, nestas condições o que é este “Eu”? Num mundo onde os nomes não interessam e onde não existem caras, qual é a nossa identidade? Sem o nosso ritmo de vida normal, profissão, amizades e relações, quem nos define? Para mim, este é o tema fundamental da história e o que mais me impressionou, apesar de se perder bastante no filme: no livro além de não haver nomes (as personagens são identificadas pelas suas classes ou particularidades: o médico, a mulher, o velho, etc.), também não existe a definição visual que o filme dá, o que remete ainda mais para essa falta de identidade…

Há outros pormenores deliciosos: o facto do médico, depois de muita frustração pela forma como dependia excessivamente da mulher, se consegue adaptar e ir às escuras pela cidade; a revelação de, depois de muitos minutos de película em que a mulher do médico nos parece a única minimamente humana, se deixa influenciar pelo ambiente selvagem na cena em que protege a comida dos “lobos” à porta do supermercado; e principalmente o comportamento desprezível dos saudáveis em relação aos cegos, ao desconhecido (com uma breve incursão irónica à religião). A ignorância transforma-se em medo, e o medo em violência, patente em cenas tensas como “o médico à procura de medicamentos” vs. “o soldado stressado”… Por fim, e sem spoilar nada, o final deixa-nos uma sensação, ora de esperança, ora de profunda perplexidade para uma nova realidade: como começar de novo se tudo em que acreditávamos foi desacreditado?

Em termos mais técnicos, a fotografia e o estilo de realização ajudam a uma boa contextualização, apesar de a estética usada ser por vezes um pouco excessiva (mas interessante). Os cenários estão muito bem conseguidos e as interpretações são bastante consistentes (Julianne Moore à cabeça). Talvez o maior defeito que consigo apontar ao filme é uma certa dificuldade em revermo-nos nas personagens, apesar de até preferir este distanciamento como forma de aumentar o conceito de falta de identidade…

2 comentários:

Anónimo disse...

Estou de acordo com o dito. Filme simplesmente fantástico, eu também não li o livro mas é um projecto que penso iniciar em breve. Muita tensão durante o filme, inclusivamente senti-me tão absorvida pelo mesmo e como a nível de fotografia está tão bem conseguido que senti uma tensão ocular durante toda a exibição, com as sombras, falta de luminosidade. Quero dar realmente os parabéns. Durei bastantes dias a pensar nas mensagens transmitidas e deixou-me que pensar e repensar muitas ideias pré concebidas. Não passamos de animais que fazem de tudo para garantir a sua subsistência, o social e os valores deixam de existir e o animal que mais rápido se adapte ao meio e o "mais forte" é quem ganha a liderança.

Sérgio Cruz Serra disse...

Belo comentário. Fizeste o que nenhum crítico me tinha feito, acerca deste filme, que é querer vê-lo.