segunda-feira, 20 de outubro de 2008

DocLisboa - Crazy English e Let's Get Lost

Crazy English

Este filme peca por duas coisa, na minha opinião. Primeiro, estamos a seguir uma pessoa do tipo que eu não gosto, seja de que nacionalidade fôr: excessivamente nacionalista, excessivamente convencida do seu sucesso, apregoando-o quando qualquer oportunidade surge - ou até inventando oportunidades para se auto-adular -, com toda uma cena de "para vos ajudar, vou-vos humilhar", "vocês estão a aprender inglês para que possam ganhar muito dinheiro", etc, etc, etc. Em segundo lugar, o tempo excessivo.
O realizador, neste último item, nem teve culpa. Ele disponibilizou uma cópia mais curta do filme, em beta, mas a produção do festival, em busca de uma forma mais nobre de passar o filme, conseguiu arranjar a cópia em película, cópia que nem o próprio realizador sabia que existia. Resultado: mais de hora e meia de filme, com conteúdo repetido (não as cenas, apenas o conteúdo, as aulas do senhor que eram bastante metódicas, mas repetitivas, para que os alunos pudessem aprender bem a pronúncia dos americanos).

E pronto, tal como no We (Wo Men), que visionei no dia anterior, no fim do filme apeteceu-me correr para fora da Culturgest para poder sacudir o vermelho que domina aquele auditório.


Let's Get Lost

Não me apetece falar aqui do filme propriamente dito. Fico-me só por uma frase: está bem montado, está esteticamente apetecível, e creio que o realizador faz um bom trabalho a evocar o contraste entre os "bons velhos tempos" e o declínio de uma pessoa.
Atirando estes preciosismos para trás das costas, vamos falar de Chet Baker.


Quando contactamos com o antigo Chet Baker, vem-nos à cabeça um Jeff Buckley. Quando se fala de música mais recente, alguns nomes são atirados ao ar com um certo pesar: Eliott Smith, Jeff Buckley, promessas feitas e nunca totalmente exploradas. Também podemos falar dos outros todos: Kurt Cobain, Janis Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix. Com Chet Baker a diferença é que ele teve muito mais tempo para se desenvolver, mas apenas conseguiu transformar o seu sucesso numa vida mais pessoal, mais reservada. Não é comparável portanto a um George Best, que mesmo depois do futebol conseguia imprimir escândalos em qualquer jornal que ande à procura deles.

Dizia eu que, nas imagens dos anos 50, vem à cabeça um Jeff Buckley. Ambos morreram por acidente, ambos tinham uma voz doce e ambos apareceram assim do nada, capazes de revolucionar um estilo musical apenas armados com um talento que lhes parecia fácil passar para a música. A grande diferença é que Jeff Buckley morreu cedo e, pelo menos até me provarem o contrário, com menos sangue à lá Keith Richards nas veias. Mas fico a pensar em como seria a vida de Jeff caso o seu tempo não tivesse chegado ao fim... e, infelizmente, continuei a traçar comparações ao longo da vida de Chet Baker, neste documentário.

Chet Baker era, como já mencionei, alguém a quem a fotogenia passou a ser determinante na sua carreira. Como um fotógrafo mencionou, "eu estava lá para cobrir um evento, no entanto a minha objectiva pousava sempre na sua cara", e as mulheres reparavam nisso... Outra personagem, masculina, menciona um momento em que estava a ouvir Chet Baker e tentou meter conversa com uma senhora que estava ao seu lado. Ela diz-lhe "peço desculpa, mas não fale comigo. Neste momento estou apaixonada pelo Chet Baker", ao que ele responde: "Também eu...".

Inevitavelmente, para quem tratava a maior parte das drogas por "tu", Chet Baker chocou toda a gente na audiência que não lhe era familiar ao mostrar, na década de 80, uma cara com a pele agarrada ao crânio, os olhos sempre semicerrados, a boca a não querer fazer muito esforço para falar, um mapa topológico de uma zona muito montanhosa, e cheia de rios, em vez de cara lisa e doce de outros tempos. A dentadura veio quando, num presumível ajuste de contas (negado por Chet, que prefere contar a história de uma forma mais à Conan Doyle, com vilões à espera debaixo de escadas), alguém lhe arrancou os dentes, um a um, tornando impossível o tocar de trompete - sua imagem de marca - durante uns anos.

Portanto, perdoe-me quem acha que a comparação com Jeff Buckley é absurda, mas a imagem, de uma pessoa promissora que entretanto desaparece, não me sai da cabeça. Apesar do Jeff não ter tido tanta culpa nisso. Ambas as vidas parecem ter acabado cedo, e apenas a música continuou. No caso de Chet Baker, estava lá o corpo a acompanhá-la.

Após conhecermos uma vida atribulada, com direito a prisão, um acesso fácil a drogas, e um grande talento musical, o realizador revela-nos as mulheres do músico. E aí é que um Chet Baker muito gasto começa a falar com alguma reserva.

A primeira mulher, que o próprio tem dificuldade em lembrar o nome, não é muito mencionada. A segunda, Halima, deu-lhe um filho do qual ele não sabe muito - "anda por aí, não pára em nenhum sítio, gosta de cães". A terceira, juntamente com os seus três filhos, só sabe falar dele amargamente, chamando "cabras" às amantes, esperando que ele apareça para ajudar nas finanças da casa.

E isto foi o que me entristeceu no filme. Parecia que ninguém o via como pessoa. Como uma das amantes mencionou "ele representava tudo o que eu amava na vida. O jazz." Então e a pessoa? Ouvindo estas coisas, não me admira que o seu mundo passasse a ser as drogas ou o álcool. Se eu fosse apenas um produto, imaterial como a música, não pensaria tanto no mal que a droga faz ao corpo. Afinal de contas, a música não apanha uma overdose.

Na década de 70, Chet Baker reaparece, gravando álbuns dispersos por várias editoras e - após treinar a sua nova dentadura - com um toque de trompete mais vivo e mais jazzy. Esta fase durou até à sua morte, em 1988.

O filme culmina com um "espectáculo" em Cannes. As aspas são necessárias neste caso porque, como diz o músico, "toquei para um público três vezes maior que este e não se ouvia um alfinete a cair. Este é o pior público para se tocar...". Após pedir silêncio, pois era "uma música que o requer", lá cantou e encantou, quase fazendo crer que as rugas eram causadas pela transfiguração da sua face em dor, enquanto canta, e não pela heroína. Dando-nos a ilusão de que aquela cara era inevitável, mesmo tirando as drogas.

Aconselhável a todos os fãs de jazz, mas desaconselhável a todos os fãs de jazz... isto faz sentido, se pensarem um bocado no assunto. Eu gostei.*

Sérgio Cruz Serra

Crazy English repete hoje, dia 20, às 21:30, no Museu do Oriente.
Let's Get Lost repete hoje, dia 20, às 23:30, na sala 3 do S. Jorge.

*Ouvir jazz coloca-me num episódio de Peanuts. Gosto, mas passado um bocado começo a andar num passo esquisito, com um cão branco e preto a meu lado e caio sempre que tento pontapear uma bola. Miúda estúpida.

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